quarta-feira, 25 de novembro de 2009

A culpa


A gente nasce sendo ameaçado: não faz isso, menino, papai do céu briga; olha o homem do saco; se não comer tudo, não ganha sobremesa. Sem falar nas músicas de ninar: “a cuca vai pegar”, “boi da cara preta, pega esse menino” e por aí vai, uma criação que tem o medo como maior elemento controlador.

Depois, já crescidinhos, começam as doutrinas do pecado. E são muitos.Responder atrevido para a mãe? Pecado! Dar porrada no amiguinho? Pecado! Deixar comida no prato? Pecado! Passar a mão na bunda da colega de classe? Pecado!

Parece que tudo que é bom é pecado. Mas, como ninguém é de ferro e a natureza humana é mole, as escorregadas acabam acontecendo. E quando acontecem, trazem consigo o terceiro elemento da santíssima trindade do controle social, junto com o medo e o pecado: a culpa.

E como é fácil a gente se sentir culpado. Por tudo. Ou, o que é pior, por nada. Tanta culpa que às vezes nos colocamos no centro do universo, responsáveis por tudo de bom ou ruim que aconteça. E coisas absurdas afloram.

Aconteceu comigo, lá pelos 15 anos de idade. Alucinado por futebol, cheguei um dia à brilhante conclusão de que era eu, um adolescente tirano esquecido naquele fim de mundo que era Itajaí, o culpado quando o meu querido Fluminense perdia qualquer partida.

Explico. Vivia eu aquela dolorosa fase áurea do onanismo, do prazer solitário e fantasioso, às voltas com revistinhas suecas e de catecismo, em tardes abafadas de idas silenciosas e repetidas ao banheiro.

Numa dessas tardes, no longínquo ano de 1983, contudo, meu interesse se dispersou por causa da final do campeonato carioca. Concentração total, camisa tricolor vestida, sofrimento à flor da pele, o jogo se encaminhava para o final em um arrastado zero a zero, resultado que favorecia ao Flamengo. Então, em um gesto tresloucado, no auge do desespero, criei coragem e fiz uma promessa forte, contundente, irrecusável por parte dos céus: se o Fluminense vencesse a partida, eu passaria uma semana inteira, sete intermináveis dias na mais completa abstinência onanística. Banheiro só para banhos rápidos e necessidades fisiológicas irreprimíveis.

Nada poderia ser mais difícil, nenhum sacrifício poderia ser maior, mas aos 44 minutos do segundo tempo, só mesmo algo de gigante magnitude poderia dar resultado. Então, um minuto depois da promessa ser enviada, o Assis recebe um lançamento divino do Delei, invade a área e fuzila o Raul, fazendo um a zero no último minuto de jogo, me fazendo quebrar o teto de gesso com um soco, quase matar minha mãe de susto e descobrir o tamanho poder que eu tinha nas mãos. Literalmente.

Desse dia em diante e por uns dois anos, usei meu poder secreto para levar o Fluminense à conquista do tricampeonato carioca e à conquista do Brasileiro de 1984. Embora a história não registre, fui eu, com a renúncia ao pecado e livre de culpa, o responsável por aquela fase de ouro, e não os dirigentes ou jogadores. Mas a verdadeira glória é anônima.

Agora o Fluminense está nessa baba, não ganha mais nada e vai acabar na segunda divisão. Contratam jogadores, mudam comissão técnica toda hora, torram o dinheiro da Unimed e nada dá jeito. Tem horas que penso em ligar para o Branco e contar toda a verdade sobre aqueles anos de glória e sobre o que está acontecendo: larguei as punhetas em meados dos anos 80 e parei de fazer promessa.

Zé Mauro Nogueira

Um comentário:

  1. (fez lembrar nossa conversa.)

    legal ver que o passado
    é um ensaio pro futuro.

    eis um conto de MÃO cheia.
    rendeu boas risadas.
    senso de humor sem perder a elegância.

    destaque para as pérolas de sabedoria:

    "a santíssima trindade do controle social:
    medo, pecado e culpa."

    "a verdadeira glória é anônima."

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