quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Amor e vida líquidos


Depois de um bom tempo lendo apenas romances, senti vontade de retomar leituras do tipo “cabeção”, como dizem os mais jovens ou mais descomplicados. Faz tempo que não me encanto com nada novo em ficção e ter relido A Casa do Poeta Trágico, do Cony, me fez perceber que vinha perdendo o prazer de ler.

Aliado a isso, questionamentos intermináveis sobre esta nossa sociedade apressada me fizeram buscar textos sobre a tal pós modernidade. Não era possível que todo esse sentimento de desajuste que, por vezes, eu sinto, fosse tudo culpa da minha amalucada psique. E nem que fosse exclusividade minha.

Então fui rever algo dos meus tempos de universidade, vinte e tantos anos atrás, época em que universitário ainda queria mudar o mundo, e não apenas a própria vida, e a UNE era entidade de representação política dos estudantes, e não apenas agente emissor de carteirinhas para meia entrada.

A ideia era começar lendo Marshall Berman, afinal, muitas vezes a sensação que me vinha era que minha vida vinha mesmo se desmanchando no ar. Mas aí, graças a uma referência do colega Davi Araújo, me interessei por Zygmunt Bauman e topei com seu conceito de liquidez da vida e das relações humanas.

Bauman e Berman usam, não por acaso, as palavras “sólido” e “líquido” em títulos de suas obras. Marx e Engels relataram no Manifesto Comunista que tudo que era sólido desmancha no ar, tudo que era sagrado é profanado, em referência ao momento histórico que testemunhavam: a revolução burguesa. Ali, esclarecem, “A burguesia só pode existir com a condição de revolucionar incessantemente os instrumentos de produção, por conseguinte, as relações de produção e, com isso, todas as relações sociais. (...) Dissolvem-se todas as relações sociais antigas e cristalizadas, com seu cortejo de concepções e de idéias secularmente veneradas, e as relações que as substituem tornam-se antiquadas antes mesmo de ossificar-se”. Aí está o conceito de liquidez.

E desde então, nada chega a tornar-se sólido. Tudo é mercadoria; tudo tem de ser rápido para que possa ser consumido, descartado e trocado por algo mais novo. As opções são muitas, há muito que experimentar. A vida é líquida, as relações sociais são líquidas, o amor é líquido.

Bauman mostra as enormes dificuldades para estabelecer laços humanos duradouros como algo típico desta nossa época. As relações são fluidas, sem peso, válidas para prazer e consumo imediato, vulneráveis a quaisquer obstáculos. Nunca as pessoas tiveram tão conectadas umas às outras, nem nunca se sentiram tão sozinhas e vazias. Não é uma teoria, não há apologias nem receitas, apenas uma análise científica da sociedade. Nem moral nem religião, apesar das “acusações” de moralista que pesam sobre esse autor polonês radicado na Inglaterra.

Minha solidão se sente acompanhada. Esse trecho de música agora é entendido por mim de uma outra e mais ampla maneira. Não diminui a dureza da tarefa de buscar estabelecer os tão desejados laços afetivos sólidos, mas, pelo menos, minimiza um pouco aquela sensação de “ah, que sujeito chato sou eu”.

Zé Mauro Nogueira

terça-feira, 23 de agosto de 2011

Mário Sílvio - irmão

Teve uma época, em Belém do Pará, que tínhamos que pegar dois ônibus para ir para a aula. Um nos levava de Icoaraci até o centro, outro nos deixava próximos da escola. Mesmo na dureza e morando longe, o pai pagava colégio bom.

Sempre fui ruim para lembrar que idade tinha nessas coisas, mas acho que eu deveria ter algo como 10 anos e ele uns 14. Apesar de mais novo, eu sempre parecia estar adiantado e ele atrasado. Custou-me tempo e maturidade para entender que ele sempre soube viver melhor do que eu e hoje continua mais feliz do que eu jamais consegui ser.

Era um dia como outro qualquer, farda do colégio Santa Maria, mochila preta nos ombros. Tínhamos acabado de descer do primeiro coletivo e íamos andando em direção ao ponto onde pegaríamos o próximo. Como sempre, eu ia à frente, atento a tudo, olhando pra trás ligado em não perder o ônibus.

Numa dessas olhadas, não enxergo o Mário. Começo a voltar, preocupado, procurando onde tinha se metido meu irmão. A primeira coisa que vi foi a mochila caída no asfalto. Coração dispara, a adrenalina toma conta e avanço correndo em direção as pessoas que paravam para olhar. Então o vejo com as duas mãos apoiadas no chão, tentando sair de dentro do bueiro onde havia se enfiado, todo molhado e com uma cara apatetada.

Voltamos pra casa. Eu, sem razão nenhuma, fui primeiro. Ele ficou secando no banco da praça.

Zé Mauro Nogueira

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Cream cracker com mel


Parece que foi um dia desses, pois me lembro perfeitamente, meu pai e eu estávamos sozinhos em nossa chácara, em Belém do Pará, assistindo O Homem do Fundo do Mar e comendo apenas biscoitos cream cracker com mel. Talvez seja esse o momento de maior proximidade com ele em toda a minha infância, pelo menos é como lembro. E é a lembrança que mais gosto.

Acho que o que torna esse instante especial é o fato de que nunca tivemos muitos momentos “pai e filho”. Desde muito cedo fomos criando uma distância enorme, parte disso em função do pavor que sempre tive do meu pai. Ele era um cara poderoso, explosivo, intolerante, eu morria de medo de levar um esporro. Melhor era não chegar muito perto.

Não o vejo há muito mais de 10 anos, não nos falamos por telefone, apenas, de vez em quando, entrava um e-mail dele pedindo alguma coisa. Com a maturidade e, depois de ter eu mesmo me tornado pai, passei a entendê-lo melhor e as mágoas foram dissipadas. Sobrou amor de filho e admiração, mas junto com o sólido entendimento de que esse bem querer só era possível se mantida a distância. O velho Mauro Rodrigues Nogueira é perigoso!!!

Acho que a melhor referência que posso dar do meu pai é o personagem do filme Big Fish. Vida intensa, cheia de coisas que parecem inacreditáveis. A última que eu soube dele, pela boca de sua primeira esposa, foi de que quando o conheceu, numa festa, ele falou o tempo todo em espanhol. Só no segundo encontro foi saber que era brasileiro. Nada mais “ele”.

Que eu saiba ou me lembre, trabalhou na General Electric e na Folha de São Paulo; foi dono de frota de barcos de pesca e frigorífico exportador de pescados; foi fazendeiro e madeireiro; teve restaurante; foi lobista importante na constituição de 1988; escreveu livros de economia, a biografia do fundador de um grande banco e até contos eróticos; e, por fim, aproveitando a velhice e seus conhecimentos exotéricos, assumiu-se como mestre em yoga e tornou-se curandeiro através do uso de cristais.

Medo, culpa, remorso, arrependimento, vergonha, essas palavras nunca existiram para o velho, razão da minha grande admiração. Meu pai ganhava e perdia dinheiro sem culpa, saía e entrava em casamentos sem remorsos, sempre olhando pra frente, desapegado, tirando da vida tudo que ela podia dar. Foram quatro filhos com quatro mulheres diferentes e soube que, até um dia desses, estava, de novo, apaixonado, mesmo com 86 anos.

De repente, para minha surpresa, recebo o seguinte e-mail: “O pai está pifando, está na hora. Sempre te admirei”. Algo bateu em mim. Não era só o fato de não me pedir nada ou de me fazer um elogio. Tinha ali algo de desistência, de despedida mesmo. Fato é que, dias depois, minha irmã o interna num hospital, no Rio de Janeiro, velhinho, calado, muito doente, frágil. O velho cansou!

Aconteça o que acontecer, viverá sempre na minha memória e nas histórias que contarei dele. Tenho orgulho de ser seu filho. E de vez em quando, quando quiser sua companhia num dia quieto, vou abrir um pacote de bolacha cream cracker e deixar me levar pelo cheiro do mel.

Zé Mauro Nogueira – pro meu pai.