quinta-feira, 30 de agosto de 2018

Viver é desenhar sem uma borracha


Como dizem os MadDogs, viver é desenhar sem uma borracha. Não dá para voltar atrás, não dá para desfazer o que está feito, não dá para retirar palavra dita. E Deus pode até abrir uma janela quando se fecha uma porta, mas esta, uma vez fechada, não torna a abrir.

E aprendi isso da única maneira possível: sofrendo por uma porta que eu mesmo fechei cometendo erros que não poderia ter cometido. É a vida impondo limites, dizendo não, ensinando que há coisas que não se pode mesmo fazer, que há coisas delicadas que se quebram para sempre.

Confesso que custei a aprender. Jovem, sempre achei que tudo tinha jeito, que sempre conseguiria o que eu queria, que sempre haveria uma forma de consertar as coisas. Até o primeiro e peremptório "não".  A partir daí entendi: bem vindo à vida adulta, onde tudo tem um preço e consequência.

Às vésperas de completar 50 anos, reflito sobre a vida mais do que de costume. Não buscando um sentido, mas buscando compreensão, que, para mim, é o próprio sentido. Aprender me parece ser o propósito. As escolhas e suas renúncias, os equívocos e suas dores, os amores e suas decepções, os medos e desejos, tudo parte de um processo de aprendizado intensivo e incessante.

E apesar de ter vivido tanto, ainda me surpreendo com a vida, que sempre traz algo novo. Tudo para que possamos continuar aprendendo, crescendo, evoluindo. Não importa se temos 50 anos ou 18.

Tornar-me mais independente e verdadeiramente livre para escolher faz parte do que ainda pretendo. Que todos possamos buscar a capacidade de escolher libertos de compulsões, vícios, medos, padrões de comportamento condicionados e auto destrutivos. Que possamos nos fazer inteiros, plenos de nós mesmos e capazes de amar verdadeiramente e não apenas desejar.

E que as linhas que traçamos sejam cada vez mais firmes, belas e autênticas, desenhadas com a sabedoria que a vida nos permite buscar.


Zé Mauro



terça-feira, 3 de julho de 2018

Liberdade?


Poucas ideias são tão defendidas, valorizadas e promovidas quanto a liberdade. Na política, na sociologia, na psicologia, nas artes, na mídia, nos negócios (principalmente nos negócios!), enfim, ser livre é um dos valores mais cultuados da humanidade.

Nada contra! Pelo contrário. Comungo do entendimento que ser livre é condição sine qua non para a possibilidade de uma plena existência humana. O que me estarrece, contudo, é a ideia de liberdade que predomina hoje em dia: a possibilidade de alguém fazer exatamente o que lhe convier.

Liberdade não é isso. Não pode ser isso. Ser livre não é ter a possibilidade de fazer tudo o que lhe der na telha. Isso é mero exercício de vontade, manifestação de capricho e, muitas vezes, compulsividade. Porque se estou condicionado a fazer algo, então não tenho realmente uma escolha.

E liberdade é, sim, a possibilidade de escolha. O que implica, necessariamente, em responsabilidade. Cada escolha traz em si uma consequência e uma renúncia. Uma pessoa é tão mais livre quanto mais puder escolher como quer ser, verdadeiramente, desde que suas ações não atinjam o direito do outro, do coletivo. Agir de acordo com sua vontade sem se preocupar com o que virá de seus atos não é ser livre, é ser leviano, egoísta, irresponsável e inconsequente.

Contudo, essa ideia equivocada de liberdade parece ser cada vez mais dominante. O liberalismo mal interpretado parece ter trazido em si a semente dessa distorção, embora não a tenha formulado, à medida em que coloca o indivíduo como centro da vida, e não mais a sociedade.

A mídia e as manifestações culturais cultuam o “direito” de fazer o que quiser, de consumir o que quiser e como quiser, de viver como quiser, sem deter-se em limites quaisquer que sejam.

Penso que esse é um equívoco fundamental e pode ajudar a explicar, em parte, a crise moral desta nossa sociedade, essa sensação de “não tem mais jeito” que nos assola.

Enquanto não entendermos que o comportamento individual é limitado pelo interesse coletivo, que há limites para cada um, não conseguiremos começar a construir uma alternativa verdadeira. Enquanto acharmos que a culpa é do outro, dos políticos, dos empresários ou do vizinho, não teremos a menor chance.



Zé Mauro Nogueira


segunda-feira, 14 de maio de 2018

O bêbado e o perdido


Eu tinha 22 anos quando cheguei para morar em Miami. Absolutamente sozinho. Ninguém me esperava no aeroporto, eu não tinha nenhum contato na cidade, nunca tinha estado nos Estados Unidos antes e não tinha a menor certeza de que daria conta da tarefa que fui para cumprir.

Mais assustado, impossível. Cheguei num final de tarde ensolarado, quente pra caramba. Assim que entrei no apartamento que meu pai tinha alugado para mim, senti o peso da situação. Larguei a mala em cima da cama, fui até a varanda olhar a cidade e ficou claro que só havia uma coisa a fazer para acalmar: beber!

Sem conhecer a cidade, sem internet para pesquisar no Google (era 1991) e sem carro, só me restou sair andando a esmo até encontrar uma loja de bebidas. Uns 30 minutos depois, passaporte mostrado para comprovar a maioridade, saí da liquor store carregado.

Logo na esquina, um semáforo. Quase ninguém na rua, quase noite. Esperávamos para atravessar, eu, de um lado, e um sujeito aparentemente alcoolizado, do outro. Quando fechou, andamos um em direção ao outro. Então, o bêbado parou bem na minha frente e, incrivelmente, foi na veia: Welcome to America, guy!

Eu devia parecer muito perdido mesmo. E estava tão atordoado que custou um tempinho até me dar conta do que tinha acabado de acontecer e abrir meu primeiro sorriso em solo americano.

Ah, bêbado vidente!


Zé Mauro Nogueira

quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018

Nelson e Lúcia - amigos




Isso deve ter uns 4 anos. Tudo em mim pedia por uma parada geral, por um desligamento do mundo. Alguém então me falou de Nelson, Lúcia e o Avoante. Um casal que vivia em um veleiro e que poderia nos acolher por uns dias à bordo.

Em um píer no bairro da Ribeira, em Salvador, embarquei no Avoante, uma embarcação pequena, mas valente, aconchegante como casa de mãe, para 4 dias de velejadas pela Baía de Todos os Santos.

Paixão à primeira vista. Pela vela, pelo veleiro, por Nelson e Lúcia e por aquela vida tão simples e diferente da minha e que eu nem sabia que existia. Dormir ao balanço do mar, olhando apenas o clarão das estrelas, foi algo que me tocou profundamente. E a partir dali o mar da Bahia virou meu destino sempre que a correria da vida em terra permitia. A ponto de eu mesmo comprar um veleiro e acalentar sonhos de libertação por quase um ano.

Certo dia, recebo a notícia de que haviam vendido o Avoante. Tinham vivido nele por mais de 10 anos, mas era necessário. Aquele não era apenas um barco, era um pedaço de suas almas, era o ente tangível que lhes ancorava um modo de vida.

A tristeza me bateu. Não conseguia ver Nelson e Lúcia em terra firme. Temi por sua felicidade, desconfiei que não conseguiriam mais se adaptar.

Hoje, vez por outra, entra uma mensagem de whatsapp do “Comandante”, direto de sua casa na praia de Enxu Queimado, no litoral do Rio Grande do Norte. Às vezes é uma foto das delícias preparadas por Lúcia, às vezes um post do preservado e ativo Diário do Avoante (diariodoavoante.wordpress.com), ou às vezes apenas uma bela foto da natureza deslumbrante do lugar com um sincero “Bom dia, meu amigo”.

Nunca senti em sua voz uma ponta de ressentimento. Nunca um tom de melancolia, nunca um maldizer a vida, sempre a mesma alegria, generosidade e simplicidade que conheci e aprendi a admirar a bordo do Avoante.

Obrigado por mais uma lição, além da vela, Comandante!


Zé Mauro Nogueira